sábado, 17 de março de 2012

Um lugar para chamar de meu

Em Boipeba, na Bahia, nada mudou. Na verdade, mudou, sim, um pouco, mas nem o extravagante shopping consegue tirar da ilha o título de destino de praia mais bonito do Brasil para o nosso editor

 

Informação relevante: sou suspeito para falar de Boipeba. É para mim um dos destinos de praia mais bonitos do Brasil, senão o mais. Conheci tarde, em 2003, e voltei duas vezes, a última em 2011. Em oito anos, a ilha baiana mudou pouco, apesar de estar entre a bombada Morro de São Paulo e a famosa Barra Grande.
Desde a foz do Rio do Inferno (nome dado pelos jesuítas, que, segundo consta, encalhavam com seus barcos no rio e eram atacados pelos índios), onde estão a vila e a praia fluvial da Boca da Barra, sucedem-se praias com pouquíssima ou quase nenhuma ocupação. Tassimirim, Cueira, com suas centenas de coqueiros, Moreré, famosa por suas piscinas naturais, a deserta Bainema e Castelhanos, onde existe um pequeno povoado. No lado oeste da ilha são quilômetros e quilômetros de mangue com ocupação ainda menor.
Tal como Morro de São Paulo, carros não vão a Boipeba. A maior parte dos turistas vai por Morro, de lancha. Mas o astral das duas ilhas vizinhas (Boipeba e Morro, que fazem parte do mesmo município-arquipélago, Cairu) é tão distinto que, ao retornar a Boipeba, a tendência natural é evitar o pernoite no Morro. Boipeba é como a irmã virgem que não morou no Rio.
A grande dificuldade de acesso e o fato de a ilha ser uma área de proteção ambiental (APA) garantiram, até aqui, a preservação do lugar. Não há resorts, piscinas de borda infinita, beach clubs, subcelebridades patrocinadas. É um desses lugares em que você entra em qualquer trecho de rio ou mar sem pensar duas vezes (ajuda bastante o Atlântico ser tranquilo, domado pelo arrecife), considera praticar nudismo, faz os melhores amigos da sua vida em algumas horas e fica se perguntando o que diabos o impede de se mudar súbito para lá. Muitos forasteiros, diversos deles estrangeiros, só fizeram essa pergunta uma vez. Alguns dos melhores restaurantes e pousadas de Boipeba são tocados por catarinenses, brasilienses, franceses, americanos. Como a charmosíssima Santa Clara, aberta em 2002 pelo matemático Charles Levitan e por seu irmão Mark, nova-iorquinos do Queens.
É também um estrangeiro o grande proprietário de terras de Boipeba. O italiano Fabio Perini, que fez fortuna ao desenvolver máquinas para a indústria de papel e comanda um estaleiro na Itália e um condomínio fabril em Joinville, entre outros negócios, é dono de 3,5 quilômetros quadrados da ilha (e de outros 7 em Morro de São Paulo). É sua toda a Praia de Cueira, que, livre de construções, conserva o shape dos tempos da Primeira Missa. Mas Perini desperta amores e ódios, especialmente depois que mandou construir algo que lembra vagamente um ginásio de esportes junto ao pequeno cais da Boca da Barra.
É muito difícil entender a escala do projeto, um Maracanã em relação às construções modestas de Boipeba. O negócio deve abrir em fevereiro com comércio miúdo (queijo das cabras que Perini mantém no Morro, artesanato, farmácia etc.). Na parte de cima, 14 apartamentos serão oferecidos para os turistas. Na construção, tratores revolveram terras – e as chuvas do ano passado fizeram rolar os muros do cemitério da cidade, bem ao lado. Há pouco tempo um caminho murado começou a ser aberto em direção à Praia da Cueira, onde Perini tem o projeto, revelado em primeira mão à VT, de construir um resort nos moldes do Quinta dos Ganchos, de Governador Celso Ramos (SC). O projeto ainda não possui as licenças ambientais e não foi exibido aos moradores de Boipeba, o que fez gerar especulações de todo tipo na ilha. Segundo Marcelo Hack, diretor das empresas de Perini no Brasil, o resort terá no máximo 30 quartos e ocupará apenas “1% da Praia da Cueira”.
Ainda que as edificações do italiano deem o que falar por anos e anos na vila, Boipeba vai durar muito tempo no nível “paraíso”. Eu posso estar enganado, mas é difícil imaginar que o pescador Guido, famoso pelas lagostas fresquíssimas que serve justamente na Cueira, grelhadas numa fogueira feita de palha de coqueiro, vá colocar um néon na fachada de seu quiosque (antes nem quiosque havia: eram só mesas de plástico, mesas que Guido subia após o almoço para o alto das árvores, por amor de a maré cheia não as levar); nada indica também que as coisas vão mudar muito em Moreré, dominada por pousadas simples, por campistas e por nativos que preparam um belo polvo e uma ótima farofa de banana, como Dona Angélica, do quiosque Paraíso. Para Charles, da Santa Clara, que se define como um “eterno otimista”, Boipeba está no lucro. “Apesar de haver muito desmatamento, as coisas poderiam ser bem piores. Muitos outros lugares no Brasil estão se degradando.” Há também um sentimento entre os locais de que os ganhos do desenvolvimento acelerado seriam ouro de tolo. “Não queremos virar Morro de São Paulo”, diz o guia Iran, quarentão boa-praça que me conduziu num passeio de canoa pelos canais labirínticos do manguezal do Rio do Inferno. Enquanto caranguejos escalavam as raízes aéreas com a destreza de macacos, ele contou sobre o dia em que se perdeu do pai ali e teve de dormir no breu do mangue. Não bastasse, no dia seguinte ainda levou uma coça do velho e sofreu com uma superdose de pimenta aplicada na comida por sua mãe.
Boipeba convida à leseira, ainda que, para conhecer bem a ilha, só de barco ou caminhando muito. As pousadas estão longe de ser luxuosas, mas você não vai querer outra coisa da vida. A Mangabeiras, no alto de um morro, tem uma vista arrasadora das praias, e o suco de mangaba é cortesia; e a Santa Clara, com seu ótimo restaurante, tem ainda um bangalô para massagem, com direito a uma pequena biblioteca com a coleção de paperbooks de Charles. Se você sente falta do Big Brother e dos gols da rodada, leve seu tablet: o wi-fi funciona a contento. Em Moreré, a Alizées Moreré tem bangalôs que trepam pela encosta. Há deques suspensos entre eles, perigosos para crianças. Por isso não aceitam menores de 6 anos.
Moreré tem piscinas naturais que são muito visitadas em passeios bate e volta das lanchas que vêm de Morro de São Paulo. Às vezes o mar mexido dificulta a navegação, mesmo para quem parte de Boipeba. Mas você não perde nada se for às piscinas de Castelhanos, num passeio que dá direito a conhecer um banco de areia tão belo quanto improvável, a Coroa Grande. A navegação é calma, pelo rio, com parada para aperitivar ostra no bar flutuante e outra para almoçar de verdade um polvo sem igual no povoado de Cova da Onça.
Como qualquer destino de praia no Brasil, o turismo é uma atividade pouquíssimo sustentável, mas sua escala limitada em Boipeba não traz ainda grandes problemas ambientais nem desconforto para os viajantes – às vezes faltam água e luz. Mais preocupante é o lixão da própria ilha, que, ninguém sabe direito, pode estar contaminando águas de rios. A sonhada ponte entre Itaparica e Salvador, divulgada com estrépito pelo governo petista da Bahia, talvez um dia facilite o acesso e agite as coisas no paraíso. Com tudo isso, as construções do italiano Perini podem não ser muito mais do que uma interferência estética a lamentar. Não vão manchar a reputação de Boipeba como o lugar que o Grande Arquiteto criou num dia particularmente feliz e jogou fora o molde. A pergunta mais importante a fazer agora, se me permitem, diz respeito a mim, não a Boipeba. É esta: o que eu ainda estou fazendo tão longe dali?
 http://viajeaqui.abril.com.br/materias/ilha-de-boipeba-bahia

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